A
ideia de inferioridade da raça negra foi difundida há séculos,
quando colonizadores europeus buscaram teorias científicas que
colocassem negros como seres inaptos às atividades intelectuais e
mais propensos ao uso da força bruta. Muitos filósofos e pensadores
da época endossaram esse pensamento. A igreja também teve parte
nesta história, pois classificou indígenas como seres com alma e o
povo negro como desalmados. Nesse sentido, escravizá-los seria o
caminho natural a ser tomado.
Quem
pensa que nos desvencilhamos dos resquícios da escravidão está
muito enganado, carregamos até hoje em nossa linguagem termos e
expressões racistas; ainda sofremos reflexos da “abolição”,
que colocou o povo negro à margem sem proporcionar nenhuma estrutura
digna de moradia ou dar-lhes empregos. Aliás, pelo contrário,
imigrantes europeus foram contratados para exercer as funções dos
“ex-escravos” e terras lhes foram dadas para viver.
Hoje,
a luta para que haja a inserção de negros em todos os âmbitos da
sociedade está sendo feita e o trabalho é árduo. Para isso,
contamos com a escola, que deve ser uma potente ferramenta na
desconstrução do racismo e na
valorização da diversidade étnica;
é um ambiente que precisa ter como função proporcionar ao aluno
crescimento social, afetivo e
intelectual e que deve ter, ainda, como objetivo, eliminar as
desigualdades
que insistem em existir em relação
a determinados grupos historicamente marginalizados.
A
inclusão e desenvolvimento de atividades que quebrem a imagem
estereotipada e cheia de preconceitos - que ainda é depositada sobre
a negritude - requer fazer este questionamento: a escola sabe
identificar o racismo? A resposta para essa pergunta tem sido “não”.
A ideia de que racismo só ocorre pela via agressiva e quando há
intenção deliberada de ofender pessoas negras – por meio de
xingamentos explícitos, por exemplo - é vigente e há uma imensa
dificuldade em entender que o fenômeno sobrevive e se perpetua de
forma sútil e aparece em ações simples, diárias, corriqueiras,
quase invisíveis, porém nocivas.
O
silêncio sobre esta
temática paira em diversas instituições de ensino. Somente em
ocasiões isoladas como no dia da Consciência Negra é dada alguma
importância ao tema e, às vezes, mesmo na data citada, a questão
passa despercebida. A ideia de que não precisamos de um dia da
Consciência Negra, mas sim 365 dias de consciência humana permeia
nas
entrelinhas do sistema educacional, denotando o desinteresse e a
displicência de instituições e profissionais no trato da história
negra brasileira. Agem como
se já tivéssemos alcançado a plenitude da democracia racial,
como se, sendo “todos miscigenados” teríamos superado
o racismo. Este mito, difundido com eficácia, certamente auxiliou no
surgimento da assustadora estatística, que consta no livro “O
espetáculo das raças”, da antropóloga Lilia Schwarcz; ela diz
que 98% dos brasileiros afirmam conhecer alguém preconceituoso, ao
mesmo tempo em 99% diz não ser um deles.
Ignorar
o racismo é um método ineficaz de combatê-lo. Várias crianças
têm sua autoestima dilacerada pelo preconceito: a aluna que não é
escolhida para a dança da festa, os papéis principais nas peças
com princesas e príncipes que lhes são negados, os apelidos que
animalizam e a insistente “implicância” com o cabelo crespo.
Esta
“aversão” é apresentada aos pequenos desde muito cedo; meninas
e meninos negros são alvo de chacotas por causa da forma natural de
seus cabelos. Madeixas lisas, sem cremes, chuquinhas ou gel tendem a
ficar caídos, enquanto o crespo está alto, pois este é o
crescimento natural dele. Por que o cabelo afro não pode ser livre
como o cabelo liso? Por que deve estar sempre colado ao couro
cabeludo? Meninas têm seus fios constantemente criticados quando
estão soltos, a aparência vista como desarrumada gera discussões
que giram em torno dos mesmos temas: o cabelo da aluna é “fuá”
ou “ruim”, tem que estar amarrado, enquanto isso o liso é
venerado e amplamente aceito.
Meninos
também sofrem a imposição da “cabeça raspada”. Ao
primeiro sinal de crescimento o
cabelo é cortado, e caso isso não
ocorra, há um consenso de que está feio, sem cuidado, que pode
pegar piolho, como se o parasita tivesse uma predileção por cabelos
crespos. Essas demonstrações de rejeição e aceitação pelo
crespo e pelo liso, respectivamente,
nada mais são que o próprio racismo que nos foi introjetado no
intuito de perpetuar a hierarquização iniciada
pelos colonizadores. O
frustrante é que reproduzimos isso, quase que sem refletir no que
estamos transmitindo às gerações futuras.
Diferenças
físicas devem sim serem valorizadas. Devemos criar amor pelos traços
físicos como, nariz, boca, e cabelo. Isso faz parte da construção
da identidade da criança e deve ser incentivado e nutrido.
Expressões racistas como “cabelo fuá”, “cabelo ruim”,
“cabelo de pico”, “pixaim”, “cabelo armado” não deveriam
jamais serem ditas por quem está em um ambiente escolar. A visão de
que há cabelos “melhores” e “piores” precisa extinguir-se.
Existem cabelos maltratados e bem tratados, fora isso, são apenas
fios em cabeças livres de quaisquer tipos de classificação que os
menospreze.
Crianças
tendem a repetir o comportamento dos adultos, absorvem palavras
proferidas por nós e as
repetem. Na tenra infância,
nós, adultos, já damos classificações do que é “feio” e do
que é “belo”, quando chamamos à atenção e pontuamos que
desobedecer é feio e ser educado é bonito. Em meio a essa
construção dialética, geralmente,
ocorre a inserção dos contos de fadas tão comuns no meio infantil.
Histórias de princesas, príncipes, bruxas más, bonecos de madeira
e patinhos feios que viram cisnes, a maioria deles transmitindo uma
lição de moral em seu desfecho... todos esses fatores influem a
criança, muito é internalizado e reproduzido mais tarde.
Educadoras
e educadores precisam atentar para a apresentação de livros
didáticos que coloquem negros em posições subalternas ou que façam
uma representação negativa que remeta ao esteriótipo do relaxo,
pobreza, pés descalços e semblantes tristes. A ideia é construir
na criança amor e admiração pela sua cor e traços fenotípicos,
portanto, ter cuidado ao escolher as obras é de grande valia.
Porém
quando procuramos na escola material com a temática africana,
infelizmente nos deparamos com sua ausência ou inexistência. A
consequência disso é a limitação. Caímos na mesmice, perdemos de
explorar um mundo novo e rico, com reis, rainhas, príncipes e
princesas muito diferentes dos convencionais. Infelizmente acabamos
por retratar o povo negro de forma simplória e sem abarcar sua
magnitude, acabamos por ceder às “tias Anastácias” e
“sacis-pererês” em datas específicas. O que nos salva é a
unânime “Menina bonita do laço de fita”, uma bela referência
de livro infantil, mas que não deveria ser a única.
A
parte artística e
a memória afro permanecem ocultas em grande parte do meio escolar. A
lei 10.639/03,
que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e
Afro-brasileira, veio depois de muita luta do movimento negro e
constitui o desejo de divulgar nossas raízes, para que sejam
reconhecidas e admiradas por aqueles que desconhecem suas origens. A
lei vigora há mais de dez anos e infelizmente falar sobre
africanidades brasileiras ainda é um tabu que deve ser quebrado.
Existem
projetos pontuais elaborados por educadores que tratam com
propriedade das relações étnico-raciais, estes são agulhas no
palheiro que merecem divulgação e aplausos que incentivem
iniciativas correlatas. Um exemplo é o da professora
Fabíola Fraga da
Escola de Educação Infantil Jacyntha Ferreira Souza Simões, em
Vitória no Espírito Santo,
autora de um projeto escolar
voltado
para
a preservação cultural da memória e representatividade negra.
Incluir
questões raciais no currículo escolar é necessário, pois só
assim estudantes poderão notar e combater discriminações. Promover
o respeito às diferenças é tarefa principal na formação de
cidadãos dignos que respeitem verdadeiramente o próximo. O mais
difícil é reconhecer que profissionais da área da educação ainda
não sabem lidar com o racismo e a ajuda se faz necessária;
formações que inspirem e desafiem professores a discutir e realizar
projetos com o foco exposto são fundamentais. Só com dedicação e
comprometimento conseguiremos cortar o enraizado racismo que tanto
nos faz mal e atrasa.
***
Agradecimentos
à professora Nicolle Carone da Cunha e ao professor Paulo Cesar
Silveira das Neves, pelas dicas especiais.