terça-feira, 10 de março de 2015

Na escola, o racismo não deve se matricular

A ideia de inferioridade da raça negra foi difundida há séculos, quando colonizadores europeus buscaram teorias científicas que colocassem negros como seres inaptos às atividades intelectuais e mais propensos ao uso da força bruta. Muitos filósofos e pensadores da época endossaram esse pensamento. A igreja também teve parte nesta história, pois classificou indígenas como seres com alma e o povo negro como desalmados. Nesse sentido, escravizá-los seria o caminho natural a ser tomado.

Quem pensa que nos desvencilhamos dos resquícios da escravidão está muito enganado, carregamos até hoje em nossa linguagem termos e expressões racistas; ainda sofremos reflexos da “abolição”, que colocou o povo negro à margem sem proporcionar nenhuma estrutura digna de moradia ou dar-lhes empregos. Aliás, pelo contrário, imigrantes europeus foram contratados para exercer as funções dos “ex-escravos” e terras lhes foram dadas para viver.

Hoje, a luta para que haja a inserção de negros em todos os âmbitos da sociedade está sendo feita e o trabalho é árduo. Para isso, contamos com a escola, que deve ser uma potente ferramenta na desconstrução do racismo e na valorização da diversidade étnica; é um ambiente que precisa ter como função proporcionar ao aluno crescimento social, afetivo e intelectual e que deve ter, ainda, como objetivo, eliminar as desigualdades que insistem em existir em relação a determinados grupos historicamente marginalizados.

A inclusão e desenvolvimento de atividades que quebrem a imagem estereotipada e cheia de preconceitos - que ainda é depositada sobre a negritude - requer fazer este questionamento: a escola sabe identificar o racismo? A resposta para essa pergunta tem sido “não”. A ideia de que racismo só ocorre pela via agressiva e quando há intenção deliberada de ofender pessoas negras – por meio de xingamentos explícitos, por exemplo - é vigente e há uma imensa dificuldade em entender que o fenômeno sobrevive e se perpetua de forma sútil e aparece em ações simples, diárias, corriqueiras, quase invisíveis, porém nocivas.

O silêncio sobre esta temática paira em diversas instituições de ensino. Somente em ocasiões isoladas como no dia da Consciência Negra é dada alguma importância ao tema e, às vezes, mesmo na data citada, a questão passa despercebida. A ideia de que não precisamos de um dia da Consciência Negra, mas sim 365 dias de consciência humana permeia nas entrelinhas do sistema educacional, denotando o desinteresse e a displicência de instituições e profissionais no trato da história negra brasileira. Agem como se já tivéssemos alcançado a plenitude da democracia racial, como se, sendo “todos miscigenados” teríamos superado o racismo. Este mito, difundido com eficácia, certamente auxiliou no surgimento da assustadora estatística, que consta no livro “O espetáculo das raças”, da antropóloga Lilia Schwarcz; ela diz que 98% dos brasileiros afirmam conhecer alguém preconceituoso, ao mesmo tempo em 99% diz não ser um deles.

Ignorar o racismo é um método ineficaz de combatê-lo. Várias crianças têm sua autoestima dilacerada pelo preconceito: a aluna que não é escolhida para a dança da festa, os papéis principais nas peças com princesas e príncipes que lhes são negados, os apelidos que animalizam e a insistente “implicância” com o cabelo crespo.

Esta “aversão” é apresentada aos pequenos desde muito cedo; meninas e meninos negros são alvo de chacotas por causa da forma natural de seus cabelos. Madeixas lisas, sem cremes, chuquinhas ou gel tendem a ficar caídos, enquanto o crespo está alto, pois este é o crescimento natural dele. Por que o cabelo afro não pode ser livre como o cabelo liso? Por que deve estar sempre colado ao couro cabeludo? Meninas têm seus fios constantemente criticados quando estão soltos, a aparência vista como desarrumada gera discussões que giram em torno dos mesmos temas: o cabelo da aluna é “fuá” ou “ruim”, tem que estar amarrado, enquanto isso o liso é venerado e amplamente aceito.

Meninos também sofrem a imposição da “cabeça raspada”. Ao primeiro sinal de crescimento o cabelo é cortado, e caso isso não ocorra, há um consenso de que está feio, sem cuidado, que pode pegar piolho, como se o parasita tivesse uma predileção por cabelos crespos. Essas demonstrações de rejeição e aceitação pelo crespo e pelo liso, respectivamente, nada mais são que o próprio racismo que nos foi introjetado no intuito de perpetuar a hierarquização iniciada pelos colonizadores. O frustrante é que reproduzimos isso, quase que sem refletir no que estamos transmitindo às gerações futuras.

Diferenças físicas devem sim serem valorizadas. Devemos criar amor pelos traços físicos como, nariz, boca, e cabelo. Isso faz parte da construção da identidade da criança e deve ser incentivado e nutrido. Expressões racistas como “cabelo fuá”, “cabelo ruim”, “cabelo de pico”, “pixaim”, “cabelo armado” não deveriam jamais serem ditas por quem está em um ambiente escolar. A visão de que há cabelos “melhores” e “piores” precisa extinguir-se. Existem cabelos maltratados e bem tratados, fora isso, são apenas fios em cabeças livres de quaisquer tipos de classificação que os menospreze.

Crianças tendem a repetir o comportamento dos adultos, absorvem palavras proferidas por nós e as repetem. Na tenra infância, nós, adultos, já damos classificações do que é “feio” e do que é “belo”, quando chamamos à atenção e pontuamos que desobedecer é feio e ser educado é bonito. Em meio a essa construção dialética, geralmente, ocorre a inserção dos contos de fadas tão comuns no meio infantil. Histórias de princesas, príncipes, bruxas más, bonecos de madeira e patinhos feios que viram cisnes, a maioria deles transmitindo uma lição de moral em seu desfecho... todos esses fatores influem a criança, muito é internalizado e reproduzido mais tarde.

Educadoras e educadores precisam atentar para a apresentação de livros didáticos que coloquem negros em posições subalternas ou que façam uma representação negativa que remeta ao esteriótipo do relaxo, pobreza, pés descalços e semblantes tristes. A ideia é construir na criança amor e admiração pela sua cor e traços fenotípicos, portanto, ter cuidado ao escolher as obras é de grande valia.

Porém quando procuramos na escola material com a temática africana, infelizmente nos deparamos com sua ausência ou inexistência. A consequência disso é a limitação. Caímos na mesmice, perdemos de explorar um mundo novo e rico, com reis, rainhas, príncipes e princesas muito diferentes dos convencionais. Infelizmente acabamos por retratar o povo negro de forma simplória e sem abarcar sua magnitude, acabamos por ceder às “tias Anastácias” e “sacis-pererês” em datas específicas. O que nos salva é a unânime “Menina bonita do laço de fita”, uma bela referência de livro infantil, mas que não deveria ser a única.

A parte artística e a memória afro permanecem ocultas em grande parte do meio escolar. A lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, veio depois de muita luta do movimento negro e constitui o desejo de divulgar nossas raízes, para que sejam reconhecidas e admiradas por aqueles que desconhecem suas origens. A lei vigora há mais de dez anos e infelizmente falar sobre africanidades brasileiras ainda é um tabu que deve ser quebrado.

Existem projetos pontuais elaborados por educadores que tratam com propriedade das relações étnico-raciais, estes são agulhas no palheiro que merecem divulgação e aplausos que incentivem iniciativas correlatas. Um exemplo é o da professora Fabíola Fraga da Escola de Educação Infantil Jacyntha Ferreira Souza Simões, em Vitória no Espírito Santo, autora de um projeto escolar voltado para a preservação cultural da memória e representatividade negra. 



















Incluir questões raciais no currículo escolar é necessário, pois só assim estudantes poderão notar e combater discriminações. Promover o respeito às diferenças é tarefa principal na formação de cidadãos dignos que respeitem verdadeiramente o próximo. O mais difícil é reconhecer que profissionais da área da educação ainda não sabem lidar com o racismo e a ajuda se faz necessária; formações que inspirem e desafiem professores a discutir e realizar projetos com o foco exposto são fundamentais. Só com dedicação e comprometimento conseguiremos cortar o enraizado racismo que tanto nos faz mal e atrasa.

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Agradecimentos à professora Nicolle Carone da Cunha e ao professor Paulo Cesar Silveira das Neves, pelas dicas especiais.